segunda-feira, 6 de maio de 2013

Antropologia - RAÍZES DO BRASIL


RAÍZES DO BRASIL
Sérgio Buarque de Holanda
Capitulo I
Fronteiras Europeias (resumo)


A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra.
[...]
A Espanha e Portugal são, com a Rússia e os países balcânicos (e em certos sentidos também a Inglaterra), um dos territórios-ponte pelos quais a Europa se comunica com outros mundos. Assim, eles constituem uma zona fronteiriça, de transição, menos carregada, em alguns casos, desse europeísmo que, não obstante mantém um patrimônio necessário.
Foi a partir da época dos grandes descobrimentos marítimos que os dois países entraram mais decididamente no coro europeu. Esse ingresso tardio deveria repercutir intensamente em seus destinos, determinando muitos aspectos peculiares de sua história e formação espiritual. Surgiu assim um tipo de sociedade que se desenvolveria, em alguns sentidos, quase à margem das congêneres europeias, e sem delas receber qualquer incitamento, que já não trouxe em germe. 
[...]
Pode dizer-se, realmente, que pela importância peculiar que atribuem ao valor próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em relação aos semelhantes no tempo e no espaço, devem aos espanhóis e portugueses muito de sua originalidade nacional. Para eles, o índice do valor de um homem infere-se, antes de tudo, da extensão em que não precise depender dos demais, em que não necessite de ninguém, em que se baste. Cada qual é filho de si mesmo, de seu esforço próprio, de suas virtudes.
[...]
Essa concepção espalha-se fielmente em uma palavra bem hispânica, “sobranceria”, palavra que indica inicialmente a ideia de superação. Mas luta e emulação que ela implica era tacitamente admitidas e admiradas, engrandecidas pelos poetas, recomendadas pelos moralistas e sancionadas pelo governo.
É dela que resulta largamente a singular tibieza das formas de organização de todas as associações que impliquem solidariedade e ordenação entre esses povos. Em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida.
[...]
A frouxidão da estrutura social, à falta de hierarquia organizada devem-se alguns dos episódios mais singulares da história das nações hispânicas, incluindo-se nelas Portugal e Brasil. Os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente, com a cumplicidade a indolência displicente das instituições e costumes. As iniciativas, mesmo quando se quiseram construtivas, foram continuamente no sentido de separar os homens, não de uni-los. Os decretos dos governos nasceram em primeiro lugar da necessidade de se conterem e de refrearem as paixões particulares momentâneas, só raras vezes da pretensão de se associarem permanentemente as forças ativas.
A falta de coesão em nossa vida social não representa, assim, em fenômeno moderno. E é por isso que erram profundamente aqueles que imaginam na volta à tradição, a certa tradição, a única defesa possível contra nossa desordem.
[...]
Nossa anarquia, nossa incapacidade de organização sólida, não representam, a seu ver, mais do que uma ausência da única ordem que lhes parece necessária e eficaz. Se considerarmos bem, a hierarquia que exaltam é precisa de tal anarquia para se justificar e ganhar prestígio.
[...]
Assim, a sociedade dos homens na terra não pode ser um fim em si. Sua disposição hierárquica, posto que rigorosa, não visa à permanência, nem quer o bem-estar no mundo. Não há, nessa sociedade, lugar para as criaturas que procuram a paz terrestre nos bens e vantagens deste mundo. A comunidade dos justos é estrangeira na terra, ela viaja e vive da fé no exílio e na mortalidade.
[...]
A Idade Média mal conheceu as aspirações conscientes para uma reforma da sociedade civil. O mundo era organizado segundo leis eternas e indiscutíveis, imposta do outro mundo pelo supremo ordenador de todas as coisas. Por um paradoxo singular, o princípio formador da sociedade era, em sua expressão mais nítida, uma força inimiga, inimiga do mundo, inimiga da vida.
[...]
No fundo, o próprio princípio de hierarquia nunca chegou a importar de modo cabal entre nós. Toda hierarquia funda-se necessariamente em privilégios. E a verdade é que, bem antes de triunfarem no mundo as chamadas ideias revolucionárias, portugueses e espanhóis parecem ter sentido vivamente a irracionalidade específica, a injustiça social de certos privilégios, sobre tudo dos privilégios hereditários.
[...]
Efetivamente, as teorias negadoras do livre arbítrio foram sempre encaradas com desconfiança e antipatia pelos espanhóis e portugueses. Nunca eles se sentiram muito à vontade em um mundo onde o mérito e a responsabilidade individuais não encontrassem pleno reconhecimento.
Foi essa mentalidade, justamente, que se tornou o maior óbice, entre eles, ao espírito de organização espontânea, tão característica de povos protestantes, e, sobretudo de calvinistas. Porque, na verdade, as doutrinas que apregoam o livre arbítrio e a responsabilidade pessoal são tudo, menos favorecedoras da associação entre os homens. Nas nações ibéricas, à falta dessa racionalização da vida, que tão cedo experimentaram algumas terras protestantes, o princípio unificador foi sempre representado pelos governos. Nelas predominou, incessantemente, o tipo de organização política artificialmente mantida por uma força exterior, que nos tempos modernos encontrou uma das suas formas características nas ditaduras militares.
Um fato que não se pode deixar de tomar consideração no exame da psicologia desses povos é a invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no culto ao trabalho. Sua atitude normal é precisamente o inverso da teoria, corresponde ao sistema do artesanato medieval, onde se encarece o trabalho físico, denegrindo o lucro, o “lucro torpe”. Só muito recentemente, com prestígio maior das instituições dos povos do Norte, é que essa ética do trabalho chegou a conquistar algum terreno entre eles. Mas as resistências que encontrou e ainda encontra tem sido tão vivas e perseverantes, que é lícito duvidar do seu êxito completo.
[...]
A ação sobre as coisas, sobre o universo material, implica submissão a um objeto exterior, aceitação de uma lei estranha ao indivíduo. Ela não é exigida por Deus, nada acrescenta à sua glória e não aumenta nossa própria dignidade.
[...]
Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana do pão a cada dia. O que ambos admirem como ideal é uma vida de grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação.
[...]
Também se compreende que a carência dessa mora do trabalho se ajustasse bem a uma reduzida capacidade de organização social. Efetivamente o esforço humilde, anônimo e desinteressado é agente poderoso da solidariedade dos interesses e, como tal estimula a organização racional dos homens e sustenta a coesão entre eles. Onde prevaleça uma forma qualquer de moral do trabalho dificilmente faltará à ordem e a tranquilidade entre os cidadãos, porque são necessárias, uma e outra, à harmonia dos interesses. O certo é que, entre espanhóis e portugueses, a moral do trabalho representou sempre fruto exótico. Não admira que fossem precárias, nessa gente, as ideias de solidariedade.
A bem dizer, essa solidariedade, entre eles, existe somente onde há vinculação de sentimentos mais do que relações de interesse, no recinto doméstico ou entre amigos.
A autarquia do indivíduo, à exaltação extrema da personalidade, paixão fundamental e que não tolera compromissos, só pode haver uma alternativa: a renúncia a essa mesma personalidade em vista de um bem maior.
A experiência e a tradição ensinam que toda cultura só absorve, assimila e elabora em geral traços de outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida. Neste particular cumpre lembrar o que se deu com as culturas europeias transportadas ao novo mundo. Nem o contato e a mistura com as raças indígenas, ou adventícias fizeram-nos tão diferentes dos nossos avós de além-mar como às vezes gostaríamos de sê-lo. No caso brasileiro, a verdade, por menos sedutora que possa parecer a alguns de nossos patriotas, é que ainda nos associa à Península Ibérica, a Portugal especialmente, uma tradição longa e viva, bastante viva para nutrir, até hoje, uma alma comum, a despeito de tudo quanto nos separa. Podemos dizer que de lá nos veio a forma atual de nossa cultura; o resto foi matéria que sujeitou mal ou bem a essa forma. 

Fronteiras Européias

Nenhum comentário:

Postar um comentário